sexta-feira, 17 de outubro de 2014

O que é TPB?

A VIDA À BEIRA DO ABISMO

Matéria da Revista VEJA de 1° de Julho de 2009


É assim que se sentem os pacientes com distúrbio fronteiriço da personalidade. Acossados por uma sensação de desamparo que lhes parece inextinguível, eles têm de lutar bravamente para adentrar os limites da nova normalidade.

Ana, de 26 anos, é uma jovem de feições delicadas. A pele alva contrasta com os cabelos escuros, lisos e curtos. Ela é do tipo que sempre busca as palavras exatas para expressar suas opiniões e sentimentos. Domina quatro idiomas e estuda numa das melhores universidades do país. Bonita e inteligente, Ana seguiria um caminho sem relevos ríspidos, não fosse o abismo. Ele se abre à sua frente na forma de um vazio que a tudo engole, da sensação de abandono e do medo de perder os próprios contornos, aparentemente tão delineados. Ana sofre, e sua dor lhe parece inextinguível. Num ato de coragem, a jovem concordou em dar os depoimentos que constam desta reportagem:

- Já perdi a conta de quantas vezes tentei me matar. A situação mais séria data de quatro anos atrás. Minha mãe me encontrou desmaiada no chão do quarto, depois que tentei me enforcar. Aos 14 anos, me joguei na frente de um caminhão. Fui salva por um estranho que me puxou de volta para a calçada. Já cortei várias vezes os pulsos e, em outras, consumi quantidades exageradas de remédios. Para mim, a vida é uma obrigação.

Aos 20 anos, Ana foi diagnosticada com distúrbio fronteiriço da personalidade - é considerada uma borderline, para usar a terminologia em língua inglesa. Seus portadores têm imensa dificuldade em se incluir até mesmo nos amplos limites da nova normalidade. O Manual de Diagnóstico e Estatística de distúrbios mentais, o guia das doenças psiquiátricas da Associação Americana de Psiquiatria, caracteriza a doença com uma lista de nove sintomas: sensação constante de vazio; acessos injustificáveis de raiva; alternância constante e extrema de humor; relações interpessoais intensas e instáveis; comportamento impulsivo; idéias frequentes de suicídio ou automutilação intencional; episódios de paranóia; autoimagem instável; e esforços desmedidos para evitar um abandono verdadeiro ou imaginado. Nada, porém, define mais integralmente os fronteiriços do que a metáfora usada pela psicóloga americana Marsha Linehan, professora da Universidade de Washington e referência mundial no estudo da doença: "Eles são o equivalente psicológico dos pacientes vítimas de queimaduras de terceiro grau. Não tem nenhuma 'pele emocional' para protegê-los. O mais leve toque ou movimento pode causar-lhes muita angústia". È como se vivessem o tempo todo "imersos em tempestades emocionais que nunca se acalmam", escreve o psiquiatra e psicanalista israelense Yoram Yovell, no livro O inimigo no Meu Quarto - e outras Histórias da Psicanálise (editora Record).

O termo borderline para designar o paciente que sofre desse transtorno psiquiátrico foi usado pela primeira vez no fim da década de 30, pelo médico e psicanalista americano Adolph Stern (1878-1958). Acreditava-se, na ocasião, que seus portadores estavam na "fronteira" entre neurose e psicose. A definição do problema como um distúrbio de personalidade caracterizado por extrema instabilidade emocional e impulsividade foi consolidada entre as décadas de 60 e 70, por Otto Kernberg, psicanalista austríaco, e John Gunderson, psiquiatra americano. As estatísticas sobre a incidência dos fronteiriços na população variam de 2% a 6%. A levar em conta a poporção máxima, eles formariam um contigente semelhante aos dos que sofrem de transtornos da ansiedade, que ficam em terceiro lugar na lista dos distúrbios mentais mais comuns.

Com o aperfeiçoamento dos exames de imagens, foi possível verifcar que os fronteiriços apresentam deficiências no funcionamento de uma área do cérebro conhecida como lobo frontal. Localizada bem acima dos olhos, ela é responsável, entre outras funções, pela elaboração do pensamento e pelo planejamento das ações. Alterações nessa porção cerebral podem comprometer o juízo crítico e contribuir para o descontrole emocional. Mas, como nem todos os que exibem tais falhas no lobo frontal são fronteiriços , a conclusão é que as influências familiares e sociais são determinantes. Isso não significa que cada borderline tenha sido agredido ou negligenciado na infância. A combinação de uma criança detalhista com uma família perfeccionista, por exemplo, pode contribuir para a formação de um adulto que não consegue se sentir satisfeito com suas realizações , não conclui projetos e, assim, desenvolve uma sensação crônica de vazio - aspectos central do transtorno.

A sensação de abandono é comum a todos os fronteiriços. É como se reproduzissem continuamente o sentimento da criança pequena que teme a mais breve ausência dos pais - fonte de nutrição, afeto e amparo - como uma perda eterna. "Em certo sentido, a criança cresce e aprende a ser indépendente quando consegue procurar a imagem dos pais dentro de si, e não à sua volta", diz Yovell , em O Inimigo no Meu Quarto. A partir do momento em que ela não consegue realizar essa interiorização, está dado o primeiro passo para a formação de um adulto doentimente carente. Às vezes, no entanto, o sentimento de rejeição é fruto de um abandono real.

No desespero para não se sentir desamparado, o fronteiriço costuma "grudar" em seus amigos, médicos, cônjuges ou parentes - sufocando-os e, consequentemente, afastando-os. Como o fronteiriço só consegue se definir a partir do outro, ele muda constantemente de área de estudo, religião e estilo de vida, ao sabor das influências dos amigos ou familiares. "Assumir a identidade de pessoas próximas é uma tentativa de evitar a rejeição e o abandono que eles tanto receiam", explica o psiquiatra e psicoterapeuta Erlei Sassi, coordenador do Ambulatório Integrado de Transtornos de Personalidade e do Impulso do Hospital das Clínicas de São Paulo. Esse comportamento típico doborderline é semelhante ao do adolescente. Diz a psicóloga Jonia Lacerda, do Ambulatório de Família do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo: "È como se eles vivessem uma adolescência vinte anos mais longa do que as pessoas sem o transtorno". Vinte anos não é força de expressão. Por motivos ainda insondáveis, a partir dos 41 anos, boa parte dos pacientes tem atenuado não só esse como os demais sintomas que definem a sua condição. O problema, claro, é chegar até lá razoavelmente inteiro. Tamanha insegurança impede a construção de uma autoimagem de fato positiva. Diz Ana:

- Só consigo enxergar os meus defeitos. O reconhecimento das coisas que faço e tenho de bom (se é que há algo de bom em mim) tem de partir necessariamente dos outros. Enão pode ser qualquer um. Na faculdade, por exemplo, o aval de um professor só tem valor se ele estiver entre os mais conceituados. Se eu parar pra pensar, sei que isso é um absurdo, que impede que minha vida flua. Mas eu simplesmente não consigo evitar. Esse tipo de pensamento toma conta de mim e vai crescendo, crescendo...È um círculo vicioso infernal.

Para cumprir a obrigação de viver, é comum que o fronteiriço lance mão de aditivos. De acordo com um levantamento feito em 2008 pelo Instituto Nacional de Abuso do Alcool e Alcoolismo, dos Estados Unidos, 42% dos fronteiriços são dependentes de álcool e 30% abusam das drogas. Muitos não conseguem levar os estudos superiores até o fim. Boa parte não se casa ou é divorciada.

Devido ao fato de ser um transtorno de personalidade, ele pode ser confundido, no início, com um temperamento mais impulsivo. Por esse motivo, um paciente leva, em média, de cinco a dez anos para ser diagnosticado como fronteiriço. "Em geral, os doentes chegam ao consultório por causa de problemas decorrentes do transtorno - como abuso de álcool e drogas, depressão, automutilação ou bulimia", diz Geraldo Possendoro, psiquiatra e psicoterapeuta, professor da Universidade Federal de São Paulo. O diagnóstico só costuma ser fechado a partir dos 18 anos, quando a personalidade da pessoa já está razoavelmente definida. "Só assim os médicos conseguem ter certeza de que o comportamento errático não está cincunscrito à adolescência, com todas as suas turbulências emocionais e comportamentais", diz Fernanda Martins, psiquiatra e psicoterapeuta do Hospital das Clínicas de São Paulo.

Ao contrário do que ocorria num passado não muito distante, hoje a doença tem tratamento. A questão é que os fronteiriços resistem muito aos mediamentos e ás terapias. Com a palavra, Ana:

- Eu só aceitei me internar e me tratar de fato depois que tentei me enforcar. Quando o médico me disse, de maneira bastante firme, que, no fundo, a tentativa de enforcamento era um pedido de ajuda, eu cedi. No fundo, o que me move é a esperança. E é essa esperança que me faz querer ficar bem, seguir na terapia e tomar a medicação. São oito comprimidos por dia - um de antipsicótico, três de estabilizador de humor e quatro de antidepressivo. Eu estou melhorando. Aos poucos, mas estou.

A relação que os fronteiriços estabelecem com seus médicos e psicoterapeutas é bastante peculiar. Eles agem o tempo todo cmo se estivessem testando a dedicação e a fidelidade de quem os trata. Durante a sua gravidez , a médica Fernanda, por exemplo, teve de ser cuidadosa para evitar que suas pacientes se sentissem preteridas. "Eu costumo dizer que o fronteiriço requer um profissional muito persistente", diz o psiquiatra e psicoterapeuta Sassi. E com um sangue frio de congelar nas veias. Certa vez, no meio da noite, ele atendeu o telefonema de uma paciente. Com voz tranquila, quase infantil, ela perguntou: "Doutor, a veia jugular fica do lado direito ou esquerdo do pescoço?". Os sinais de melhora às vezes são tão sutis que podem escapar ao profissional menos experiente. "Fico extremamente satisfeito quando um paciente me telefona pra dizer que está triste, em vez de chegar ao consultório com o braço marcado por cortes", afirma Sassi. "Ao me falar de sua tristeza, ele mostra que finalmente aprendeu a expressar seus sentimentos de maneira saudável." E, quem sabe, possa enveredar pelo caminho da nova normalidade, em que não cabe a ilusão da ausência completa de tormentos.


Tempestades Emocionais

§ vivem com uma constante sensação de vazio

§ Estabelecem relações interpessoais intensas e instáveis, marcadas, sobretudo, pela dependência em relação aos pais, amigos e médicos

§ Têm um medo incontrolável de ser abandonados

§ São impulsivos em demasia

§ Alternam constantemente o humor - e, na maioria das vezes isso ocorre sem nenhuma justificativa

§ São acometidos por acessos desmedidos de raiva e ódio. Uma leve frustração pode fazer com que eles partam até para agressão física.

§ Apresentam um comportamento autodestrutivo, marcado pela automutilação e pela ideia constante de suicídio

§ Têm episódios de desconfiança que beiram a paranóia

§ Têm uma autoimagem instável - veem-se como pessoas ora totalmente ruins, ora completamente boas


Todos por um

Um ano depois do início do acompanhamento médico e psicológico, a maioria dos doentes consegue controlar a instabilidade emocional e a impulsividade. O engajamento da família no processo é imprescindível.

Remédios - Os estabilizadores de humor, antidepressivos e antipsicóticos costumam ser usados concomitantemente. Eles amenizam a irritabilidade e o comportamento impulsivo. Também abrandam a depressão e a ansiedade e reduzem eventuais delírios persecutórios. Além de atenuar os sintomas da doença, a medicação é essencial para diminuir os riscos de suicídio e automutilação.

Psicoterapia - São duas as abordagens mais comuns. Na terapia cognitivo-comportamental, o paciente aprende a identificar e corrigir pensamentos e comportamentos que lhe são prejudiciais. Com recursos da psicanálise, a terapia psicodinâmica tenta fazer com que o fronteiriço reconheça e resolva conflitos antigos e, assim, se veja como indivíduo autônomo, no controle de suas emoções.

Terapia familiar - Em geral, a família trata o doente de forma infantilizada ou agressiva, o que reforça seu comportamento fronteiriço. Os pais costumam sentir-se culpados e impotentes. Cabe ao terapeuta desfazer a idéia de que eles são inteiramente responsáveis pela doença do filho e trabalhar para transformar as relações familiares.

perdas e danos

A partir dos 40 anos, boa parte dos fronteiriços costuma apresentar melhora. As tentativas de suicídio tornam-se mais raras e as relações pessoais ficam menos conturbadas. Até lá, no entanto, sem tratamento, os doentes acumulam muitos prejuízos, alguns deles indeléveis

75% se automutilam frequentemente

42% se tornam dependentes de álcool

30% abusam das drogas

10% cometem suicídio


A maioria não consegue levar os estudos até o fim

Boa parte não se casa ou é divorciada